Quando uma pessoa procura um médico nem sempre ela procura somente um médico. Não é raro que se queira “algo além” da figura do médico.
Há quem, muitas vezes sem perceber, procure um “pai” na figura do médico, alguém que possa talvez, através da autoridade, defender e proteger o paciente (“filho”).
Há quem procure uma “mãe” na figura do médico, alguém que possa talvez, através da empatia e da compaixão, acolher e confortar o paciente (“filho”).
Há quem procure um “reforçador de crenças” na figura do médico, alguém que possa talvez, através de confirmação, dar argumento, suporte e reforço ao sistema rígido de crenças do paciente (“crente convicto”).
Há também quem procure um “curandeiro-milagreiro” na figura do médico, alguém que possa talvez, através de poderes sobrenaturais, aniquilar problemas e doenças sem que seja necessária nenhuma mínima mudança pessoal por parte do paciente (“adorador-seguidor”).
Há muitos outros papéis que podem ser ocultamente trazidos para o palco da relação médico-paciente. Observemos que não é apenas por parte de pacientes que se projetam expectativas inconscientes por sobre os médicos. O inverso também é completamente verdadeiro: médicos também projetam suas próprias expectativas ocultas por sobre os pacientes. Há médicos “pais e mães” que preferem pacientes “filhos”. Há médicos “amorfos” que preferem nunca contrariar pacientes “vítimas”. Há médicos “heróis” que preferem constituir um séquito de pacientes “fãs”.
Naturalmente, tanto médicos quanto pacientes não necessariamente fixam-se permanentemente em apenas um desses papéis. A depender de circunstâncias diversas, o mesmo médico ou o mesmo paciente podem transitar em diferentes papéis. Notemos também que nenhum desses papéis é necessariamente bom ou ruim em si mesmo, dependendo da ocasião cada um pode ter seu mérito. O que talvez seja deletério, isso sim, é ignorar que tais papéis invariavelmente emergem ou afloram neste contexto da relação médico-paciente. Fingir que não existe projeção de papéis alternativos do paciente para o médico e vice-versa pode ser fonte de turbulências potencialmente prejudiciais nessa relação.
Há um papel do médico, contudo, que possivelmente jamais devesse ser deixado de lado: o de “doutor”. A denominação “doutor” aqui não está ligada ao título acadêmico de quem possui doutorado pela Universidade. O conceito de Universidade surgiu durante a Idade Média. O termo “doutor” para médicos é bem mais antigo que isso, remonta à palavra latina docere nos idos do Império Romano. E docere está ligado a “docente” ou PROFESSOR. Assim, o “doutor” médico seria aquele que ensina como ter uma vida saudável. E como se promove então o ensino da saúde? Há basicamente três veículos fundamentais para se tentar ensinar algo a alguém: informação, conhecimento ou sabedoria.
Por séculos, o médico foi o portador da informação que potencialmente era geradora de saúde. O médico tendia a ser aquele indivíduo detentor da informação “privilegiada” valiosa (quase mística) que podia levar saúde aos pacientes. O tempos mudaram, o mundo mudou e a informação foi deixando de ser propriedade privada de alguns poucos privilegiados e foi se tornando como que uma “commodity” ao fácil alcance de todos. A informação médica passou, com o tempo, a ser sistematicamente organizada e protocolada através de centros e instituições especializadas no assunto (Faculdades, Hospitais, Congressos, Associações, Conselhos, etc.). A “informação” médica começava a mudar de patamar então para gerar conhecimento médico técnico, teórico e científico. De “propriedade” individual, a informação médica passou a ser transformada em conhecimento, agora sob a chancela de grupos institucionalizados. Informação apenas não mais bastava, o médico agora precisava também possuir o conhecimento regularmente aceito pelo grupo de especialistas referenciais. A transformação do médico “informado” autônomo para o médico “conhecedor” institucionalizado foi intensa durante os séculos XIX e XX.
Eu pessoalmente entrei na faculdade médica interessado pela ciência do conhecimento médico mas, admito, também fui muito seduzido pela ainda presente “aura” da autoridade (“mística”) do médico autônomo romântico de antigamente. Nos meus idos de faculdade, a preocupação geral dos professores parecia estar centrada em torno do conhecimento. A transformação de informação (antiga e individualizada) para conhecimento (teórico e replicável) já parecia bastante consolidada e sólida àquela altura. A preocupação dos professores estava especialmente focada no grau de atualização do conhecimento. A reciclagem de antigas verdades em novos paradigmas parecia acelerar a um ritmo cada vez mais frenético. Era muito comum eu ouvir a máxima de que: “A cada 5 anos, metade de todo o conhecimento da medicina torna-se obsoleto.” Era-me mostrado algo como a liquidez fluida e altamente mutante do corpo de conhecimentos médicos, que crescia e evoluía exponencialmente.
Navegava eu, dessa forma, na minha atuação profissional nos anos iniciais da minha prática médica em mares de informação e conhecimento, ora em águas tempestuosas e tormentosas ora em águas calmas e tranquilas. Mas nem todo um mundaréu de informação e nem todo um oceano de conhecimento técnico-científico parecia suficiente para que a função docere (“doutor”) da minha profissão fosse eficaz em, de fato, promover saúde em um nível suficientemente profundo e consistente.
A terceira forma de se ensinar, além da informação e do conhecimento, é a SABEDORIA. Pode-se ensinar alguém através do convencimento pela informação. Pode-se ensinar alguém através da argumentação embasada no conhecimento. Já a sabedoria vale-se de outras formas letivas para inspirar: exemplo, experiência e história pessoal. O sábio torna-se a si mesmo o exemplo inspirador aos outros. O professor sábio torna sua própria história pessoal material de estudo de seus alunos. O médico sábio torna sua própria vida exemplo de inspiração para os pacientes. É certo que não existe sabedoria sem informação nem conhecimento. Mas nem toda a informação e nem todo o conhecimento da galáxia viram, sozinhos, sabedoria sem um veículo humano que ponha isso em prática. Sabedoria é conhecimento em movimento. Sabedoria é SER na prática o que é bonito “em teoria”.
É certo que existiram médicos sábios em todas as eras. A sabedoria depende muito mais da prática de ser o que se ensina do que da quantidade total de informação ou conhecimento disponível. Qual seria então o médico mais capacitado em curar? Aquele que está muito bem informado acerca dos mecanismos de cura? Aquele que conhece todas as técnicas de cura? Ou seria aquele que, além de informado e conhecedor, cura-se a si mesmo para compartilhar a cura?
Leonardo Lourenço
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