Ponderações para quem tem vontade de se matar
- Leonardo Lourenço
- 5 de mai. de 2019
- 5 min de leitura
Escrever sobre suicídio é algo bastante penoso e complexo. Trata-se de um assunto que tem o potencial para suscitar sensibilidades muito profundas em muitas pessoas cujas vidas já foram direta ou indiretamente impactadas por este flagelo. Torna-se talvez um desafio pessoal ainda maior para mim ousar tratar do tema sem ter sido diretamente afetado por isso no meu círculo íntimo de convivência. Mas por estar exposto profissionalmente ao suicídio, ganhei, com o tempo, maior bagagem, experiência e confiança para lidar com os meandros intrincados e difíceis para abordar o assunto.
Eu vou expor aqui três forças principais que, no meu entender, podem estar intimamente ligadas à ideia de suicídio. Por óbvio, podem existir outros componentes não listados aqui e naturalmente nem sempre existe apenas uma única força ligada a um caso específico de suicídio ou de ideação suicida. Vale lembrar que, não raro, tratam-se de fatores que passam ao largo da parte consciente-racional-lógica da mente do indivíduo suicida.
A primeira força invisível estaria ligada a uma ideia inconsciente e por vezes até pré-verbal de vingança. Nesta situação, o suicida, mais do que matar a si mesmo, transforma o próprio ato em um símbolo íntimo de “assassinar os que ficam”. Movido talvez por rancores e mágoas profundos, antigos e muitas vezes subconscientes, o suicida lança mão do próprio corpo como palco derradeiro para um íntimo (e muitas vezes invisível) pacto de vingança. Como retaliação aos que o fizeram sofrer tanto, no lugar de exterminar essas pessoas (muitas vezes paradoxalmente muito queridas e próximas), o suicida mata-se a si mesmo como forma simbólica de assassinato dos seus próprios agressores. Vale destacar aqui que, para efeito do cérebro, pouco importa o paradeiro ou estado das pessoas físicas reais atuais que, lá atrás, fizeram-me sofrer. Para efeito da dinâmica neurofisiológica dos circuitos neurais, o modelo de vingança está direcionado àquelas imagens antigas virtuais que ficaram impressas “à ferro quente” no cérebro durante a sua formação na infância. Assim, o “assassinato-suicídio” volta-se muito mais àquelas memórias “holográficas” virtuais daquelas pessoas da infância (independente do estado atual dessas mesmas pessoas, se vivas ou mortas, se distantes ou próximas, se muito diferentes ou iguais àquela época). Neste aspecto, o suicida é, antes de tudo, um assassino vingativo não completamente ciente de sua própria condição de agressor.
É quase impossível escrever acerca de suicídio sem a menção ao sofrimento intenso e atroz experimentado pelo suicida. A segunda força oculta estaria então ligada a uma sensação profundamente egoísta de dor e sofrimento. O suicida pode julgar (de forma completamente inconsciente na maioria das vezes) que seu próprio sofrimento e dor são muito mais importantes e maiores do que os de todas as outras pessoas. Assim, por sofrer muito mais que todo mundo, isso lhe conferiria o “direito” de terminar com a própria dor terminando com sua própria vida fisicamente. Trata-se naturalmente de uma premissa subjetiva íntima completamente egoísta e aleatória, já que é impossível para qualquer ser humano experimentar dores e sofrimentos outros que não os próprios. É simplesmente impossível considerar o próprio sofrimento individual, independentemente de causa ou intensidade, como pior ou mais relevante que o de qualquer outra pessoa. Não vivemos outras vidas para poder julgar a esse ponto. Sinais exteriores de sofrimento são apenas sinais externos de sofrimento e não guardam necessariamente qualquer relação direta e proporcional com a dor íntima e subjetiva de cada um. Neste aspecto, o suicida é, antes de tudo, um sofredor egoísta não completamente ciente de sua própria condição de arrogante.
Há que se mencionar a condição de “deixar de ser um fardo”. A terceira força obscura envolve o que poderia ser considerado o extremismo da piedade ilusória. O suicida entende-se como um “peso” maior vivo do que morto. Assim, por julgar a si mesmo como motivo de problemas para pessoas queridas de sua convivência, a decisão pela interrupção física da própria vida poderia ser ironicamente revestida como um “ato heróico” de “libertação” do pretenso incômodo que sua própria vida representa para os outros à sua volta. Para que se possa acreditar em tal fantasia piedosa há que se considerar apenas um papel para o suicida: o de receptor exclusivo. Apenas alguém crente de uma condição exclusivamente receptora (oposta à condição de altruísta e solidário) para si mesmo pode conseguir enxergar-se como fardo aos outros. Qualquer um que se enxergue num mínimo papel de doador de si mesmo aos outros jamais poderia cogitar a insignificância da própria vida perante as pessoas de seu convívio. O simples fato de que a vida de alguém tenha um mínimo de ponte doadora de si mesmo a outros torna essa vida necessariamente positiva e benéfica ao entorno, por mais que se tenha uma vertente receptora exacerbada. Só ao me considerar exclusivamente receptor e zero doador eu poderia iludir-me com a falácia de ser um “peso morto” ao meu entorno. Neste aspecto, o suicida é, antes de tudo, um “mártir” que ilusoriamente se sacrifica para aliviar os que ficam, não completamente ciente de sua própria condição de receptor exclusivo.
Eu confesso que hesitei e relutei bastante antes de escrever este texto. Eu tenho plena consciência de que pessoas que tiveram familiares, amigos e conhecidos envolvidos nesse tema podem sentir este texto como se fosse uma adaga atravessando os seus próprios peitos. E também tenho noção de que essa dor e sofrimento revividos podem ser desviados contra o autor destas palavras. Isso posto, eu também nutro certa esperança de que as potenciais reflexões propostas aqui possam atingir aqueles que cogitam a possibilidade de ceifar a própria vida, despertando reflexões talvez que não tenham sido postas à luz por esses mesmos indivíduos. Não se trata em absoluto, como pode ser erroneamente interpretado por uma leitura mais superficial deste escrito, de um menosprezo à dor ou sofrimento do suicida ou do potencial suicida e nem tampouco de demonizar ou crucificar a figura do suicida ou do potencial suicida.
Como eu mencionei diversas vezes acima, apesar de o ato suicida parecer à primeira vista como um ato deliberado e voluntário, ele esconde diversas influências inconscientes e ocultas muito mais poderosas do que a aparente livre escolha superficial que o ato em si pode dar impressão. Tal ausência de consciência plena dos fatores mais profundamente escondidos faz com que eu, particularmente, não consiga enxergar culpa no ato extremo praticado pelo próprio suicida. Se nem mesmo quem se auto-inflige tal condição está plenamente ciente de todos os fatores invisíveis subjacentes motivadores, o que se pode dizer daqueles que convivem/conviveram com o suicida? Naturalmente estes também não podem ser considerados culpados. Não é culpa do suicida e também não é culpa de familiares e pessoas do entorno. Culpa, aliás, é uma péssima lupa para examinar o assunto mais de perto.
Em suma, minha ideia aqui é trazer à baila possíveis reflexões para o potencial suicida, questões que talvez possam trazer aspectos não claramente vislumbrados. Minha intuição diz que melhor do que terminar fisicamente com a própria vida, o suicídio "mental" parece-me bem mais saudável. Morrer mentalmente (e não fisicamente) para uma vida que não satisfaz e renascer (no mesmo corpo) para uma vida mais livre, feliz e plena. Para isso o desapego aos moldes inconscientes de vingança, o desapego à sensação de isolamento e desconexão egoística e também o desapego à figura de receptor exclusivo e o desenvolvimento da doação e compartilhamento de si mesmo são fundamentais. Eu morro para a antiga pessoa que precisava daqueles problemas para sobreviver e escolho ressurgir como uma nova versão de mim mesmo.
OBS: Não recomendo a interrupção de nenhum tratamento medicamentoso, psiquiátrico e psicoterápico sem antes consultar um profissional médico. Disque 188, CVV, gratuito, anônimo, 24 horas por dia, de qualquer lugar do Brasil.
Leonardo Lourenço
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