(O desapegar-se de si mesmo e a prosperidade)
"Quem sou eu sem os meus problemas?"
Aguenta eu te dizer que não adianta tentar mudar nada sem antes mudar a si mesmo?
É curiosa a forma com a qual geralmente lidamos com os nossos próprios problemas. A reação inicial mais comum talvez seja a de negação. Tendemos inicialmente a cegar, fugir ou nos escondermos do infortúnio, minimizando sua importância e relativizando o incômodo por ele gerado. Mas nem sempre o que tentamos esconder dos olhos passa despercebido ao coração. Estamos aqui no estágio de “fuga”, dentre aquelas três reações instintivas conhecidas mais comuns à sobrevivência animal: luta, fuga ou paralisia. Com o tempo, acontece o óbvio. O problema não desaparece por milagre apenas porque vestimos uma venda ao redor dos nossos olhos. Mais que isso, o problema tende a crescer e avolumar-se, isso quando ele não resolve dar crias variadas e espalhar-se enlameando várias áreas aparentemente independentes de nossas próprias vidas.
Uma vertente alternativa a essa postura de negação e evitação é a sua irmã gêmea: a camuflagem. Trata-se de um método também bastante popular de lidarmos com nossas desventuras. No lugar de virar as costas, tentamos encobrir o tormento com várias e várias camadas de coisas que se prestem a sufocar, entorpecer, calar e abafar o dissabor. Podem ser camadas de prazeres como comida e álcool em excesso, drogas lícitas ou ilícitas, deturpações sexuais, jogo ou outros vícios. Podem ser camadas de máscaras sociais, máscaras familiares ou máscaras profissionais. Podem ser camadas de confrontação por protesto, agressividade ou contestação. Podem ainda ser camadas de auto piedade através de vitimismo, culpas ou autoflagelo.
Naturalmente, investir tempo, energia e dedicação em camadas e mais camadas protetoras para blindar uma angústia íntima não resolve o assunto.
“Acordar para quem você é requer desapego de quem você imagina ser.”
Allan Watts
Quando nem a fuga e nem a camuflagem surtem efeito ou mesmo nem chegam a ser usadas como ferramentas para se lidar com nossos padecimentos, podemos lançar mão do reflexo de “luta” contra o problema. Encaramos a questão frente a frente, determinados a exterminar o nosso sofrimento. Às vezes, somos aparentemente bem-sucedidos em eliminar o mal aflitivo mais evidente. Contudo, mesmo esta aparente boa notícia pode esconder uma perigosa ilusão. Será que é possível livrar-se de um problema sem se livrar da pessoa ao qual este problema está ligado? Em outras palavras, se problema e pessoa estão umbilicalmente conectados, o que ocorre ao se eliminar um problema sem que nada realmente mude intimamente na pessoa que produz, nutre e/ou atrai este problema? A suposição mais lógica neste contexto, ao meu ver, é que a mesma pessoa (não profundamente transformada) tenderá talvez a produzir o mesmo problema, um problema ainda pior ou vários outros problemas parecidos disfarçados de problemas diferentes. E aí podemos nos enroscar. Matar um leão por dia talvez não nos traga paz e felicidade. Se eu continuar a tentar superar um problema após o outro sem atentar para o fato de que estes problemas todos podem ter todos um pano de fundo comum que os unem todos diretamente a mim mesmo, eu posso deixar passar uma oportunidade importantíssima de auto compreensão. E qual é então essa percepção importante? Trata-se de uma aceitação deveras amarga, contudo crucial de entender que “eu sou o meu problema e o meu problema sou eu”. Eu sou a única coisa que une todos os meus aparentemente distintos contratempos. À essa epifania, associa-se a ideia de que eu e o meu problema somos indissociáveis, somos partes inseparáveis de um mesmo conjunto. Trata-se de uma compreensão fundamental: o que eu penso, sinto e faço (ou seja, o que eu sou) produz, sustenta e atrai as minhas penúrias. Baseado neste conceito, nada adiantará eu me livrar de um problema sem me livrar junto do meu jeito de ser produtor necessário do conjunto dos meus problemas.
Manter uma ilusão de “eu aqui em um canto e o problema lá em outro canto”, como que completamente separado e desconectado de mim mesmo, tende a produzir uma espiral cíclica e repetitiva negativa. Suplícios, calvários e provações vão surgindo aqui e ali e cegamos para o fato de que, apesar de muitas vezes os problemas apresentarem-se sob formas variadas em diferentes locais, circunstâncias e com personagens diferentes, em sua maioria eles costumam, no fundo, ser apenas manifestações diversas de um tema raiz problemático único, oculto, íntimo e antigo. Agora então danou-se! Se não tem como fugir, se não tem como camuflar, se não tem como combater, o que fazer então??!! Neste exato ponto, algumas pessoas deflagram a terceira reação instintiva animalesca: a “paralisia”. Tal congelamento coloca-nos frente a uma encruzilhada essencial, talvez uma oportunidade ímpar de autorreflexão. Uma pergunta paradoxal pode surgir: “Quem sou eu sem os meus problemas?” Estamos, neste ponto singular, como colocados à beira de um precipício. Eu posso aqui optar por voltar a me agarrar firmemente ao meu jeito de sempre, àquela minha noção familiar do “sempre fui e sempre serei assim mesmo”, rechaçando completamente a ideia de mergulhar no vazio desconhecido. Tal escolha implica certamente, quer tenhamos ciência disso ou não, a firme manutenção do pacote completo: eu como sempre fui + O INEVITÁVEL CONJUNTO DE PROBLEMAS E SOFRIMENTOS inexpugnáveis à essa persona que não se pretende deixar de ser assim. Trata-se de uma escolha plausível e, até certa medida, justificável, visto que aqui lidamos com a ponderação entre o sofrimento familiar conhecido versus o risco de uma felicidade desconhecida. Temos um cérebro muito propenso a temer o incerto e o desconhecido. Estamos muito mais acostumados ao medo do inesperado do que ao amor pelo imponderável. Estamos bem mais familiarizados à segurança rotineira inercial do que à confiança pelo novo. Frequentemente ignoramos para o cálculo desta escolha dois aspectos. Primeiramente, deixamos de ponderar que o sofrimento conhecido passado não é garantia de estabilidade futura. Esquecemos de cogitar a chance de que a tendência pode ser de piora, muita piora futura. Em segundo lugar, o abandono de um jeito de ser não implica, em absoluto, a perda do que existe de positivo. Na verdade, é justamente o contrário: reforça-se o que já é bom e abrem-se outras frentes positivas com o desapego ao negativo.
“...quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á, quem a perder continuamente, encontrará a liberdade. Só alcança o fundo de si mesmo, só conhece as profundezas da existência quem deixa tudo, aquele para quem tudo desapareceu e se viu a sós com a verdade...”
Santo Agostinho
Há, assim, aquela que parece ser a solução mais radical e difícil (mas também a mais recompensadora) de se lidar com problemas crônicos complexos. Aqui eu introduzo então este conceito através de um neologismo: NOOCÍDIO (ou NEUROCÍDIO), em que noos representa “mente” e cidium representa “matar”. Esta ideia de “noocídio” guarda muita similaridade com a ideia expressa pelo termo “metanoia”. Metanoia significa uma profunda transformação íntima da mente. Mas como a palavra metanoia, apesar de produzir o mesmo efeito prático, está mais carregada de uma noção religiosa e espiritual, sendo por vezes tomada como um processo de encantamento produzido por forças inexplicáveis externas ao próprio indivíduo, eu optei por conceber a palavra noocídio para enfatizar a importância da vontade consciente do indivíduo neste processo, independentemente de forças religiosas ou espirituais. Por noocídio, eu pretendo expor a ideia do desapego à pessoa que precisa de determinado sofrimento para sobreviver em prol de uma metamorfose (no mesmo corpo e na mesma vida) para uma versão livre de si mesmo. Por noocídio, eu entendo aquele “clique”, aquela mágica “virada de chave” (que só cada um intimamente pode produzir) em que eu enterro um jeito de ser não mais adequado para conseguir renascer para uma vida escolhida por mim mesmo e não mais pré-programada de fábrica. Por noocídio, eu compreendo a opção pelo mergulho rumo ao abismo do desconhecido, confiando nas asas que se abrem apenas durante (e nunca antes) a queda para permitir voos antes inimagináveis.
Leonardo Lourenço
https://youtu.be/_7jphLU2jrs
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