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Foto do escritorLeonardo Lourenço

A RÉGUA DA SOFRÊNCIA


Costuma-se lidar intimamente com o sofrimento com dois mecanismos reflexos básicos de defesa: hipervalorizando-o ou subvalorizando-o.

Da supervalorização do próprio sofrimento

Nesta vertente, tendemos a interpretar nossos próprios sofrimentos como muito mais importantes que os de qualquer outra pessoa. Tendemos a perceber nossas próprias agruras como únicas e singulares, como se mais ninguém no mundo jamais houvesse passado por situação similar. Um primeiro modo de proteção então pode ser acionado: isolamo-nos numa ilha deserta de vergonha e camuflagem, já que supomos que ninguém poderia minimamente compreender a magnitude e a particularidade das nossas dores pessoais. Enclausuramo-nos em um sombrio castelo de constrangimento e segregação. Isso nos leva obviamente a um beco quase sem saída de pesar e aflição solitários. Afinal, considerar que fomos aquinhoados por uma infelicidade ímpar pode nos provocar uma percepção de sofrimento único, vergonhoso e escondível (não sei se esta palavra existe).

Um segundo modo de proteção alternativo, nessa vertente, também pode ser acionado: queremos mostrar ao mundo o quão difícil e penosa é a nossa vida. Chegamos ao ponto de querer competir com outros para verificar quem sofre mais: quem está há mais tempo sem férias, quem tem a pior doença, quem tem a família mais complicada, quem tem mais problemas financeiros, etc. Não nos iludamos, o pior coitado não recebe o melhor prêmio. A pior vítima não ganha o maior júbilo. Naturalmente, trata-se de algo que fazemos meio sem notar: tornamo-nos vítimas coitadas para tentar provar ao mundo que nosso tormento é o pior de todos (e ainda, de quebra, tentamos atrair a compaixão alheia). Não cola. Isso costuma dar ruim.

Da desvalorização do próprio sofrimento

Nesta vertente oposta, tendemos a simplesmente ignorar nossas próprias angústias. Varremos tudo para debaixo do tapete mental subconsciente na esperança de que as nossas amarguras simplesmente sumam e sejam completamente apagadas e esquecidas. Apostamos nossas fichas em instrumentos de fuga, negação ou entorpecimento para tentar enterrar o mais fundo possível os nossos piores dissabores. Isso costuma ser relativamente útil por um período de tempo variável. Mas não se iluda, por mais que posemos como inabaláveis, isso vai acabar vazando por algum lado. Pode vazar pela vida pessoal ou pela vida profissional ou pela vida familiar ou pela vida social ou mesmo sob a forma de doenças variadas pela mente ou pelo corpo.

Colocando o sofrimento em seu devido lugar

Agora que tomamos consciência de que tendemos a dar um valor errado ao nosso próprio sofrimento, seja escondendo-o como insignificante ou seja tornando-o muito mais especial do que o necessário, vejamos se, de alguma forma, conseguiríamos REESCALONAR nossas mazelas e flagelos de modo a dimensioná-los de uma maneira em que seja mais fácil lidar com eles.

Caso eu esteja na turma que habitualmente hipervaloriza o próprio sofrimento, eu posso talvez tentar derrubar o mito de que meu sofrimento seja algo tão único, especial e muito maior do que o de todo mundo. Segundo cálculos estatísticos, já passaram mais de 100 bilhões de pessoas por sobre a face do nosso planeta ao longo da história humana. Seria possível eu ser o único infeliz dotado realmente de alguma agrura ou sofrimento singular e maior que de toda essa gente? A conta não fecha. Estamos, meus caros, todos no mesmo barco humano de sentimentos, emoções e percepções subjetivas. Sofrimento, por definição, não é passível de ser medido objetivamente. Exercitar abandonar um pouco o meu ponto de vista pessoal para, por vezes, sentir na própria alma, com profundidade e honestidade, a dor de outras pessoas, a tristeza de tragédias, os flagelos humanos e os infortúnios dos outros pode me ajudar talvez um pouco a tirar meu próprio sofrimento lá do topo do meu pedestal emocional íntimo. Ao abandonar minha ilha do sofrimento isolado pelo mar da vergonha, ao derrubar os muros de insegurança do meu castelo de infelicidade e ao deixar a competição pelo troféu de pior coitado, algumas coisas interessantes podem começar a acontecer: conecto-me mais “limpamente” com as pessoas ao meu redor, sinto-me mais igualitário em relação às outras pessoas, desenvolvo melhor meu senso de empatia e compaixão, e, quem sabe, torno-me até mais feliz.

Caso eu esteja na turma que normalmente desvaloriza o próprio sofrimento, mostrando-me fortão e inabalável, eu posso, antes que seja tarde, tentar evitar ficar negando, fugindo ou me escondendo dos meus próprios suplícios. A máscara do perfeccionismo cobra um preço, uma dedicação e uma energia que talvez devesse até ser banida por lei como mecanismo universalmente disponível para sufocar as nossas próprias feridas. Fica a dica para o Congresso. Sem mencionar a confusão que fica arrumar problema para esconder problema. Eu sofro, fico com medo e daí eu escondo o sofrimento junto com o medo. Mas dai eu fico com medo de voltar a sentir medo pelo sofrimento. E então surge uma montanha de lama, camada sobre camada de medo do medo de sentir medo de voltar o medo... Eu posso tentar talvez escapar disso através da porta da exposição e da vulnerabilidade. Partindo-se do pressuposto de que o que não é diagnosticado não pode ser curado, talvez faça mais sentido eu parar de tentar esconder as minhas sombras. Partindo-se da premissa de que ninguém é perfeito, assumir-se vulnerável talvez me torne menos artificial e, quem sabe, mais propenso a curar meus medos.

Da inspiração



A ideia para a elaboração deste texto surgiu quando eu recentemente reli a obra "Cândido ou o Otimismo" de Voltaire. O livro traz uma série de histórias pessoais de tragédias e sofrimentos vividos tanto pelo protagonista (Cândido), quanto pelos diversos indivíduos que ele encontra ao longo da sua jornada no romance. Há, inclusive, uma cena emblemática durante uma viagem de navio em que cada personagem vai contando, cada um, sua história trágica pessoal, uma mais sofrida que a outra.


O livro termina com a visão de Voltaire para a questão do sofrimento humano. O protagonista, à sua maneira, descobre que o ocupar-se com a prática do servir é o seu antídoto para o foco em suas próprias lamentações pessoais.


Quando deixamos a nossa pré-ocupação (com ilusões do futuro), a nossa pós-ocupação (com as correntes do passado) e a nossa trans-ocupação (com a comparação com os outros, com a necessidade de reconhecimento alheio e com a inútil tentativa de mudar o outro), só assim conseguimos nos dedicar ao mais importante: a nossa ocupação em servir.


Leonardo Lourenço

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